Texto publicado originalmente em 15 de maio de 2021 no meu antigo blog.
Tenho uma conta no Flickr há 13 anos que eu uso para guardar mais de 2 mil fotos minhas. Recentemente entrei lá e fiquei sabendo que o site tinha diminuído o espaço de armazenamento das contas gratuitas, como a minha, para mil fotos, e que eu corria o risco de perder as fotos que excediam esse limite. Também descobri recentemente que o Yahoo, que havia comprado o Flickr, deletou todo o meu histórico de e-mails da minha adolescência/início da vida adulta e que não é possível mais recuperá-lo. Esse acontecimento me deixou furiosa e me fez refletir muito sobre a forma como eu uso a internet. Por mais que seja muito cômodo ter as redes sociais para me lembrar de algumas coisas, não esperava que essas mesmas coisas pudessem ser apagadas para sempre de um dia para outro sem nem um aviso prévio.
Com medo que eu perdesse também as fotos, comecei a migrá-las para um HD, algo que eu já devia ter feito há muito tempo, mas procrastinava. Nesse processo, encontrei fotos de viagens, como as fotos que eu tirei com a minha câmera quando fui para Portugal em dezembro de 2015, e nem lembrava que havia tirado, diferentemente daquelas que eu fiz com o celular e postei no Instagram e de vez em quando sou lembrada por essa rede social.
No filme de memórias Sans solei, de 1983, realizado pelo diretor francês Chris Marker, que é parte documentário, parte ficção, a narradora nos lê uma carta que recebe de um conhecido que diz: “Eu me pergunto como as pessoas que não filmam, não fotografam e não gravam fazem para se lembrar das coisas.”
Eu me arrependo de nunca ter mantido um diário de viagens. Tentando traçar minhas viagens passadas, o que costuma vir primeiro à minha cabeça são alguns dos perrengues que passei. Não sei se foi porque eles me marcaram negativamente ou se foi de tanto recontá-los. Entre essas memórias estão trens e voos perdidos, ou quando caí no Jardim de Luxemburgo, em Paris, na minha primeira viagem sozinha.
Lembro poucos detalhes da minha viagem para Portugal em 2015, além de uma família de franceses que foi furtada no bonde onde eu estava, uma greve de trens que me fez esperar horas na estação, e o Natal que passei na casa do amigo de uma amiga, com outros brasileiros que, assim como eu, não puderam passar o Natal com a família. São as minhas pequenas memórias.
Nessa mesma viagem, visitei Lisboa, Sintra, Coimbra e o Porto. Talvez pela proximidade do Natal, vi ruas vazias quando ainda não significavam que havia uma pandemia acontecendo.
“As Pequenas Memórias”, o título desse texto, é o nome do livro de memórias do escritor português José Saramago, em que ele conta sobre as suas memórias de quando era pequeno. Nesse livro, que eu li esse ano e gostei tanto de ler, Saramago fala da sua infância no vilarejo de Azinhaga, onde ele nasceu, das suas tantas mudanças, das escolas onde estudou, do seu medo de cachorros e até mesmo dos seus tombos. Separei trechos do livro para acompanhar algumas das fotos esquecidas da minha viagem.



"Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os
dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio."

“Às vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se não serão mais do que lembranças alheias de episódios de que eu tivesse sido actor inconsciente e dos quais só mais tarde vim a ter conhecimento por me terem sido narrados por pessoas que neles houvessem estado presentes, se é que não falariam, também elas, por terem ouvido contar a outras pessoas.”

"Graças a uns papéis que julgava perdidos e que providencialmente se me apresentaram à vista, sem esperar, quando andava à procura doutros, a minha desorientada memória pôde reunir e encaixar umas quantas peças que estavam dispersas e, finalmente, colocar o certo e o verdadeiro onde até aí haviam reinado o duvidoso e o indeciso.”

“Em rigor, em rigor, penso que as chamadas falsas memórias não existem, que a diferença entre elas e as que consideramos certas e seguras se limita a uma simples questão de confiança, a confiança que em cada situação tivermos sobre essa incorrigível vaguidade a que chamamos certeza.”

“Muitas vezes esquecemos o que gostaríamos de poder recordar, outras vezes, recorrentes, obsessivas, reagindo ao mínimo estímulo, vêm-nos do passado imagens, palavras soltas, fulgurância, iluminações, e não há explicação para elas, não as convocámos, mas elas aí estão.”

“Já não existe a casa em que nasci, mas esse facto é-me indiferente porque não guardo qualquer lembrança de ter vivido nela. Também desapareceu num montão de escombros a outra, aquela que durante dez ou doze anos foi o lar supremo, o mais íntimo e profundo, a pobríssima morada dos meus avós maternos, Josefa e Jerónimo se chamavam, esse mágico casulo onde sei que se geraram as metamorfoses decisivas da criança e do adolescente. Essa perda, porém, há muito tempo que deixou de me causar sofrimento porque, pelo poder reconstrutor da memória, posso levantar em cada instante as suas paredes brancas, plantar a oliveira que dava sombra à entrada, abrir e fechar o postigo da porta e a cancela do quintal onde um dia vi uma pequena cobra enroscada, entrar nas pocilgas para ver mamar os bácoros, ir à cozinha e deitar do cântaro para o púcaro de esmalte esborcelado a água que pela milésima vez me matará a sede daquele Verão.”

2 comentários
É por isso que tenho blog, já que não dá pra confiar cegamente nas redes sociais. Já passei pela experiência de perder 9 anos de fotos de um HD que estragou, daí hoje tenho zilhões de back ups, além dos negativos das fotos analógicas e de vez em quando mando imprimir fotos também pra ter algo tangível. Olha só, minha primeira viagem sozinha também foi para Paris! Mas não foi totalmente sozinha, pois fiquei na casa de amigos e meu marido me encontrou lá depois. Adorei que você uniu as fotos a trechos do Saramago, ficou bem poético. Até hoje não li nada dele e preciso corrigir isso…
Sinto muito por ter perdido esse tempo todo de registros. É como perder uma parte da gente.
Esse ano tenho imprimido algumas fotos que eu quero guardar.
Sobre o Saramago, eu recomendo começar por esse livro em vez de ir logo para um clássico como “Ensaio sobre a cegueira”.